O que é a Estética Transcendental?
Estética vem do termo
grego aisthésis, que pode ser traduzido como percepção ou sensação. E
transcendental significa ir além, atravessar, transpor. Mas Kant dá um novo
significado para esse termo, para ele, transcendental é ter um conhecimento
além do simples conhecimento. Ou seja, conhecer é
saber sobre um objeto, é saber sobre alguma coisa. Conhecimento transcendental
é saber como é possível para nós termos conhecimento sobre um objeto, é saber
como é possível sabermos sobre alguma coisa, é ir além do mero saber de algo,
mas entender os processos e estruturas que te levam a saber de alguma coisa.
Sendo assim, a estética transcendental é um estudo sobre quais são as condições ou estruturas cognitivas que permitem a nós ter um conhecimento sobre a realidade. Esse estudo revela para Kant que existem estruturas a priori em nossa mente que tornam possível a nossa experiência com a realidade e a percepção dos fenômenos. A priori é um termo latino e significa aquilo que vem antes, no caso de Kant, ele conclui que nascemos com certas estruturas em nossa percepção e entendimento, ou seja, temos uma estrutura cognitiva inata que nos possibilita produzir conhecimento. Essas estruturas seriam puras por serem anteriores, ou seja, a priori, em relação a qualquer experiência com a realidade fora de nossa mente.
O próprio Kant define a estética transcendental como uma
ciência dos princípios a priori da sensibilidade, e a tarefa dessa
ciência é isolar a sensibilidade e encontrar na mente as formas puras, ou
intuições puras da própria sensibilidade. Em resumo, a estética transcendental
estuda as estruturas mentais que tornam possível a experiência sensível com a
realidade, ela busca compreender como nossos sentidos, como a visão, a audição,
o tato, o olfato e o paladar se organizam para nos fornecer uma percepção
coerente do mundo.
Empirismo e Racionalismo
Kant está inserido na
discussão que surgiu entre as correntes de pensamento conhecidas como Empirismo
e Racionalismo. Grosso modo, o empirismo é a corrente de pensamento
que defende que não existe nada em nossa mente que não tenha passado pelos nossos
sentidos como tato, visão, olfato, paladar e audição. Qualquer ideia que você
tenha na mente só foi possível por conta de sua experiência sensorial com o
mundo. Temos como principais representantes do empirismo os filósofos
Aristóteles, Francis Bacon, John Locke e David Hume. Já o Racionalismo, defende
que grande parte do nosso conhecimento ou todo o nosso conhecimento tem origem
em nossa capacidade de raciocinar, ou seja, na Razão. Os racionalistas
defendiam teses como o inatismo, que é a teoria que pressupõe que já
nasceríamos com algumas ideias prontas em nossa mente. Podemos destacar como
principais representantes dessa corrente de pensamento os filósofos Platão e
René Descartes.
Kant sustenta que tanto os racionalistas quanto os empiristas estão certos. Mas também estão errados!
Para justificar isso, Kant afirma que o conhecimento é feito de algo que recebemos de fora de nós, da experiência, e aqui ele vai usar o termo latino a posteriori, que quer dizer aquilo que vem depois, e o conhecimento também é formado por algo que já existe em nós, que é anterior a qualquer experiência, e aqui ele usa o termo latino, a priori, ou, aquilo que vem antes. Ou seja, o conhecimento é formado por algo que vem de fora de nós, a posteriori e por algo que vem de dentro de nós, a priori.
O que vem de fora de nós, a posteriori, é a matéria do conhecimento, nesse ponto, Kant está em acordo com o que os empiristas afirmavam, o que forma nosso conhecimento vem de fora, através dos nossos sentidos. O que já existe em nós antes de qualquer experiência, a priori, é a forma do conhecimento. Nesse ponto, Kant concorda com os racionalistas, pois nós já teríamos em nossa mente algo inato que formata o conteúdo que recebemos através dos sentidos.
Para conhecer as coisas, precisamos da experiência
sensível, que vai fornecer a matéria do conhecimento, mas essa experiência não
será nada se não for organizada pelo que Kant chama de formas a priori da
sensibilidade e do entendimento. Essas formas, que nós vamos falar mais
para frente, já estão presentes em nós desde o nascimento e sem elas a própria
experiência sensível com a realidade não seria possível, por isso, ele também
afirma que elas são condições de possibilidade da própria experiência
sensível.
O que mais interessa Kant nesse ponto, é analisar aquilo que nos é inato e permite a experiência sensível com o mundo, ou seja, as formas a priori da sensibilidade.
Sensibilidade e Intuições
Nós temos uma receptividade em relação ao mundo, estamos abertos para receber estímulos que vêm de fora de nós através dos nossos sentidos, somos uma espécie de receptor captando aquilo que está no mundo. Através dessa nossa receptividade obtemos representações do que está no mundo. As representações são imagens mentais dos objetos que estão fora de nossa mente. O que possibilita esse processo de obter representações da realidade é a faculdade da sensibilidade. A palavra faculdade aqui tem o sentido de possibilidade ou capacidade de alguma coisa.
Essa faculdade que possibilita obtermos representações da realidade é a sensibilidade.
Os objetos
que existem no mundo nos são apresentados através da sensibilidade — lembrando
que objeto é qualquer coisa que nós podemos conhecer. A sensibilidade também
nos fornece intuições. No caso aqui, intuição é a percepção direta da
realidade. A intuição só acontece na medida em que um objeto nos é dado pela
sensibilidade, e a intuição só é possível porque os objetos da realidade afetam
nossa mente de alguma forma. Ou seja, o mundo desperta em nós intuições, se não
tivermos esse contato com a realidade, não existem as intuições.
Mas vamos com calma aqui, porque o conceito de intuição em Kant é central para entender sua estética transcendental.
O conceito de intuição em Kant vai se ramificar em vários tipos. Quando nossa sensibilidade é afetada pelos objetos que estão presentes no mundo, nos temos uma intuição sensível. A intuição sensível é a capacidade que temos de receber os estímulos da realidade através dos nossos sentidos. Podemos dizer que essa é a forma mais básica de conhecimento, porque é através dela que entramos em contato com a realidade exterior à nossa mente.
Quando somos afetados por algum objeto do mundo, temos o que Kant chama de sensação. A sensação é a experiência imediata e bruta da realidade através dos nossos sentidos, é o que vai fornecer a matéria prima para nossas percepções. A intuição sensível é a capacidade que temos de organizar e dar forma para as sensações transformando essas sensações em percepções. As percepções, por sua vez, são representações mentais que temos dos objetos. Contudo, antes de se tornar uma representação mental, a percepção precisa ser formatada por outro tipo de intuição presente em nossa estrutura cognitiva, que são as intuições puras.
As intuições puras, para Kant, são formadas pelas noções de espaço e tempo. Espaço e tempo em Kant não são elementos da realidade em si, mas sim, da nossa estrutura cognitiva. Espaço e tempo são formas a priori da nossa sensibilidade, são estruturas mentais com as quais já nascemos e que moldam o modo como percebemos a realidade. Imagine que tempo e espaço são lentes através das quais percebemos a realidade.
A ideia sustentada por Kant é a de que espaço e tempo nada mais são do que formas da nossa sensibilidade e não entidades que existem em si mesmas, ou propriedades da realidade física. Os nossos sentidos externos, (tato, paladar, olfato, visão e audição) sempre nos mostram, através de representações, coisas exteriores a nós e situadas no espaço. É no espaço que determinamos a figura e o tamanho dos objetos e a relação entre eles, ou seja, os sentidos nos mostram um espaço onde os objetos se encontram espalhados por ele. No entanto, temos um sentido interno, que é a capacidade que a mente tem de representar algo, o sentido interno é aquele no qual a mente se percebe, e este sentido interno apresentaria para a mente, os objetos na ordem do tempo.
Além disso, ainda temos a intuição empírica. A intuição empírica é o resultado da combinação entre a intuição sensível e a intuição pura. Ela é a percepção completa de um objeto presente na realidade. Vamos tentar ilustrar isso exemplos:
Imagine que você está em uma sala de aula. A sensação da cadeira em suas costas, o som da voz do professor e a visão do quadro são intuições sensíveis. Ao perceber que o quadro está na parede da frente (espaço) e que as aulas ocorrem em sequência (tempo), você está utilizando a intuição pura. A combinação dessas sensações forma a intuição empírica que é a sua percepção completa da sala de aula.
Um outro exemplo para fixar bem esses conceitos: Imagine que você está caminhando pela rua e presencia um acidente de carro.
Intuição
Sensível: O barulho da colisão, os vidros se espatifando, o
metal amassado, o cheiro de fumaça e a visão das pessoas assustadas são todas intuições
sensíveis. São as informações brutas que seus sentidos captam diretamente
da realidade.
Intuição
Pura: Ao perceber que os carros se chocaram em um
determinado ponto da rua (espaço) e que o acidente ocorreu em um instante
específico (tempo), você está utilizando a intuição pura, organizando as sensações no espaço e no tempo, dando sentido à experiência.
Intuição Empírica: A combinação da intuição sensível (os sons, cheiros, imagens do acidente) e da intuição pura (a localização no espaço e no tempo) forma a sua percepção completa do acidente. Você tem uma compreensão clara do que aconteceu, onde e quando. Em resumo, podemos dizer o seguinte:
Intuição
Sensível: É a matéria prima, os dados brutos dos sentidos.
Intuição
Pura: É o molde que organiza esses dados.
Intuição
Empírica: É o produto final, a percepção completa e organizada
do objeto.
Fenômeno e Nôumeno
A intuição empírica vai gerar aquilo que Kant chama de fenômeno. A palavra fenômeno tem origem grega e latina e significa aquilo que é visto, aquilo que aparece. Ou seja, perceber algo é se deparar com o fenômeno ou aparição para a mente daquilo que é percebido. Enquanto que a intuição empírica é a capacidade de perceber, o fenômeno é aquilo que é percebido. O fenômeno é a nossa percepção do mundo moldada pelas estruturas da nossa mente.
O fenômeno possui matéria e forma. A matéria é dada pela sensibilidade através da sensação, pois ela está o tempo todo em contato com a matéria do mundo, é a cor dos objetos, os sons que ouvimos, a sensação de temperatura etc. A matéria do fenômeno é sempre a posteriori, ou seja, ela surge depois, porque é necessário que tenhamos uma experiência com a realidade para alimentarmos a nossa percepção com a matéria da realidade, para que ocorra o contato entre a sensibilidade e as coisas, ou seja, a matéria do fenômeno vem sempre depois da experiência.
A forma, como o nome diz, é aquilo que dá forma, que ordena a matéria, no caso aqui, as intuições puras de espaço e tempo. O espaço e o tempo organizam a matéria conferindo para ela uma estrutura e é o que nos permite perceber os objetos.
Qual é a conclusão a que Kant vai chegar?
Por mais que tenhamos contato com a realidade externa através dos nossos sentidos, Kant vai afirmar que não conhecemos as coisas em si mesmas, mas apenas os fenômenos, que seriam aparências das coisas em si mesmas.
Nesse ponto, ele faz a divisão entre fenômeno e nôumeno:
Nôumeno: a realidade em si mesma. (observação: você pode
encontrar essa palavra escrita de diversas maneiras: númeno, noúmeno, mas todas
significam a mesma coisa).
Fenômeno: a aparência da realidade em si mesma.
O que Kant está propondo é que não podemos perceber a
realidade em si mesma. Vamos ver a seguir um trecho da crítica da razão pura
para ilustrar esse pensamento:
“Nós procuramos dizer, pois, que toda nossa intuição não é senão a representação de fenômenos; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal como nos aparecem; e que, se suprimíssemos o nosso sujeito, ou simplesmente a constituição subjetiva dos sentidos em geral, toda a constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo o espaço e o tempo desapareceriam, não podendo, como fenômenos, existir em si mesmos, mas apenas em nós. O que poderiam ser os objetos em si mesmos, apartados de toda essa receptividade de nossa sensibilidade, permanece inteiramente desconhecido para nós”.
Aquilo que percebemos são aparências da realidade e não a realidade em si mesma. Isso não quer dizer que a realidade em si mesma não exista, mas sim, que em nossa relação com a realidade não podemos ter acesso ao modo como ela é em si mesma. Apenas ao modo como a percebemos através das intuições puras de espaço e tempo.
Nós temos contato o tempo todo com a realidade exterior, mas esse contato só é possível por conta da nossa estrutura a priori da percepção. Se nós temos uma estrutura que é anterior à experiência sensorial, que é formada por tempo e espaço, significa que em nosso contato com a realidade já há um processamento dessa realidade, já há uma formatação da realidade, de modo que sua compreensão chega a nós filtrada, e esse filtro são o espaço e o tempo.
A Importância da Estética Transcendental
A estética transcendental de Kant foi importante na história da filosofia por ter superado o debate entre racionalismo e empirismo, pois Kant demonstra que o conhecimento se forma tanto a partir das experiências sensíveis que temos com a realidade e também a partir de estruturas mentais que são inatas em nós, ou seja, a priori, em termos simples, Kant está dizendo que o conhecimento é possível porque precisamos da experiência sensível para obter dados para o conhecimento e do funcionamento de nossa própria mente para formatar os dados obtidos pelos sentidos. O erro dos racionalistas e dos empiristas foi tentar justificar o processo de conhecimento apenas em um desses lados, ou na experiência sensível ou em nossa estrutura mental.
Contudo, Kant não para por aí, após obter os dados da realidade, formatar esses dados e formar a nossa percepção da realidade exterior, precisamos categorizar aquilo que percebemos, mas isso é assunto para um próximo artigo aqui no site.
Se quiser esse conteúdo em forma de vídeoaula, confira abaixo!
Bons Estudos!
REFERÊNCIA
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Fernando Costa Mattos. São Paulo: Vozes, 2015.