Descartes e a Dúvida Hiperbólica

A partir de seu método, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) desenvolveu o que hoje é conhecido como dúvida metódica ou dúvida hiperbólica. Metódica porque tem por base um método e hiperbólica porque é uma dúvida exagerada. Esse processo consiste em colocar em dúvida tudo aquilo que já experimentamos ou conhecemos em busca de um conhecimento verdadeiro, de uma primeira certeza.

Antes de prosseguirmos, vamos pensar um pouco sobre essa questão de colocar em dúvida tudo que já conhecemos ou experimentamos. Isso faz parte da primeira etapa do método cartesiano: nunca aceitar nada como verdadeiro à primeira vista.  Algo só pode ser admitido como verdadeiro quando for percebido de forma tão clara e distinta que não exista nenhuma situação para duvidar.

Descarte desenvolve uma dúvida generalizada que irá colocar em suspensão a certeza sobre vários setores da realidade. Essa dúvida hiperbólica acontece através de cinco argumentos. Vamos ver a partir de agora cada um deles.

Argumento do Erro dos Sentidos

Você acredita que aquilo que sente, vê, cheira ou toca pode gerar algum conhecimento que não seja verdadeiro? Ou melhor, você acredita que tudo o que você está percebendo é real? Nós usamos os nossos cinco sentidos para perceber a realidade. A visão, o olfato, o tato, o paladar e a audição. De maneira geral, as pessoas acreditam que aquilo que estão percebendo é realmente do jeito que estão percebendo. Mas será que os nossos sentidos não podem nos enganar? Será que os nossos sentidos não teriam a capacidade de fazer com que percebêssemos a realidade de forma errada? Se você acredita que os nossos sentidos podem nos transmitir informações verdadeiras sobre a realidade, então preste atenção a essa imagem.


Provavelmente você está vendo algum movimento. No entanto, essa imagem não está se movendo. Ela está parada. É uma ilusão de ótica. O movimento é provocado pela sua percepção. Ou seja, o seu sentido da visão está sendo enganado neste momento. Isso já é o suficiente para demonstrar que os nossos sentidos podem nos enganar.

Para Descartes, os sentidos não são confiáveis, pois eles podem nos levar a cometer erros. Isso significa que nós devemos sempre duvidar daquilo que aprendemos através dos sentidos e da experiência sensorial de um modo geral. Se você encontrar um exemplo de que algum dos seus sentidos te enganou alguma vez, a dúvida pode ser estendida para todas as modalidades de percepção sensorial.

No exemplo da imagem acima, nosso sentido da visão está sendo enganado. Nós podemos então duvidar de tudo que nós vemos e também duvidar de tudo que ouvimos, daquilo que sentimos o cheiro ou o gosto. Pois o conhecimento que obtemos através dos sentidos podem ser enganosos.

Argumento do Sonho

Contudo, nós podemos duvidar dos nossos sentidos, daquilo que conhecemos através dos sentidos e das ideias que nascem dos sentidos, mas e aquilo que experimentamos no momento? Parece ser algo impossível de ser colocado em dúvida, correto? Preste atenção a tudo que está acontecendo agora nesse momento. Você está lendo esse artigo, provavelmente sentado em algum lugar, em algum ambiente, e percebendo tudo que está à sua volta. Mas e se considerarmos a hipótese de que estamos sonhando?

Quando sonhamos, não nos damos conta de que estamos sonhando. Nós só percebemos que estávamos sonhando no momento em que despertamos. As percepções e sensações que temos no sonho parecem tão reais quanto aquelas que temos quando estamos acordados. Como você pode ter certeza que está realmente acordado nesse momento e não sonhando? Se quando estamos sonhando não sabemos disso e acreditamos estar vivendo a realidade, o que garante que neste exato momento não estejamos sonhando? Descartes afirma que não há como ter certeza, e dessa forma ele estende a dúvida até as sensações que nós experimentamos no momento, na atualidade. Se não há como ter certeza se estamos dormindo e sonhando ou acordados, então não há como ter certeza daquilo que estamos percebendo no momento.

No primeiro argumento, Descartes colocou em dúvida o conhecimento que surge dos sentidos, não há como ter certeza de tudo o que conhecemos através da nossa experiência sensorial. No segundo argumento, a dúvida é estendida até as percepções e sensações que temos no momento que estamos vivenciando agora. Já que os sentidos não podem nos dar um conhecimento seguro, Descartes parte em busca de uma certeza na razão. Sendo assim, ele desenvolve argumentos que colocam o conhecimento racional em dúvida, como por exemplo a matemática.

Argumento do Deus Enganador

A matemática parece ser um conhecimento certo e seguro. Mas Descartes pensa o seguinte: se Deus criou tudo que existe e é onipotente, ou seja, pode tudo, o que garante que Deus não nos criou de modo que nos enganamos toda vez que vemos um raciocínio matemático e acreditamos que esse raciocínio é certo? Contudo, esse argumento não se sustenta por muito tempo, pois atributos negativos como enganador, por exemplo, não combinam com o conceito de Deus. Descartes passa então para um quarto argumento.

Argumento do Gênio Maligno

O Pesadelo, Henri Fuseli (1781)

Descartes chega nesse argumento da seguinte forma: Deus não pode nos enganar, porque enganar é um atributo negativo e a ideia de Deus não comporta características negativas. Mas e se existir um outro ser com tamanho poder para nos enganar? Esse ser não teria bondade ou perfeição, mas seria tão poderoso a ponto de fazer com que qualquer pessoa se iluda ou se engane o tempo todo.

Esse ser seria tão poderoso que poderia estar nos enganando agora, neste momento, fazendo acreditarmos que estamos vivendo em uma realidade quando na verdade poderíamos estar presos com esse ser em algum outro lugar. Pode ser que nós nem sequer existamos enquanto corpo, que sejamos somente puro pensamento aprisionados com esse ser e ele gera em nós a percepção de que teríamos um corpo que não existe e perceberíamos uma realidade que não existe. Parece absurdo? Pois bem, não significa que Descartes acreditava realmente nesse ser, muito menos que a realidade não exista.

Nós costumamos dizer que o argumento do gênio maligno é um artifício metodológico e psicológico para manter a mente alerta. É uma alegoria, uma figura simbólica para nos manter sempre em dúvida. Sempre que você tiver certeza absoluta de algo, use o artifício do gênio maligno para colocar essa certeza em dúvida.

Vamos recapitular o percurso até aqui.

Descartes colocou em dúvida o conhecimento sensorial e as percepções imediatas através dos argumentos do erro dos sentidos e do sonho. Através do argumento do Deus enganador e do gênio maligno, Descartes estende essa dúvida e a generaliza colocando a realidade em dúvida e até o seu próprio corpo físico em dúvida.

Ou seja, ele não chegou até o momento em nenhuma certeza. Essa certeza vai aparecer no último argumento.

O Argumento do Cogito


Após todo esse processo da dúvida hiperbólica, a única coisa que Descartes não consegue colocar em dúvida é o próprio fato de que está duvidando.

Duvidar é uma característica do pensamento. É uma operação mental. Se estamos duvidando, significa que estamos pensando. Para pensar é necessário que estejamos existindo. E assim, Descartes chega à sua famosa frase: penso, logo existo, que em latim se diz cogito, ergo, sum.

Essa é a primeira certeza a qual Descartes chega. A dúvida, o pensamento é o que garante para ele a sua própria existência. Percebam que ele chega nessa conclusão através da racionalidade.

E para ele essa conclusão, obtida através da razão, é verdadeira e não pode ser colocada em dúvida. Pois o próprio ato de colocar o seu pensamento em dúvida já irá garantir de forma clara e distinta a sua existência. Essa certeza fez com que Descartes percebesse que a introspecção, a razão, a reflexão, eram um caminho válido na busca do conhecimento.

Se quiser esse artigo em forma de aula, clique no vídeo abaixo.

Bons Estudos!

Raphael Rodrigo

Escritor, Professor e Pesquisador

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