O uso das mídias sociais está alterando o modo como uma grande parcela da população percebe o mundo. O modo como estamos recebendo informações e lidando com elas está transformando nossa cognição e, aparentemente, essa transformação não é para melhor.
Nosso aparato cognitivo funciona como um filtro de todo o fluxo de informações que recebemos, e isso de um modo geral, não apenas em relação à notícias. Ou seja, o tempo todo nós somos bombardeados por informações de nosso entorno.
O ponto de discussão é que o modo como nos relacionamos com as mídias sociais, com a tecnologia de um modo geral, como se ela fosse uma extensão de nossa mente, está alterando o modo como percebemos a realidade e, talvez, isso não esteja caminhando para uma boa direção.
Hoje, toda pessoa que possui um Smartphone é um criador de conteúdo em potencial. Isso possibilita que as informações sejam produzidas e repassadas por qualquer pessoa. Cada vez mais as pessoas estão fazendo isso, o que favorece uma transformação no modo lidamos com a informação.
Nesse cenário, somos o tempo todo bombardeados por excesso de informações dos mais variados tipos. Nosso cérebro não consegue lidar com esse excesso e, para se livrar de uma sobrecarga informacional, começamos a transformar os dispositivos de acesso à internet - e a própria internet - como uma extensão de nossa mente.
Pare para pensar: neste exato momento você consegue lembrar quantos números de contatos salvos em seu Smartphone sem precisar consultar sua agenda? Provavelmente muito pouco, ou até mesmo nenhum. Sabemos que existe uma informação que registramos fora de nós e sabemos como acessar isso. Dessa forma, não precisamos nos lembrar da informação em si, mas apenas do processo que nos leva até ela. Sendo assim, consumimos cada vez mais informações curtas e rasas e cada vez mais as informações estão sendo produzidas dessa forma. Isso vai distorcendo a nossa capacidade de conversar com profundidade sobre determinado assunto. Saímos da complexidade para a simplicidade.
A informação curta em si não é um problema para a verdade pois conseguimos passar um conteúdo verdadeiro, embasado em fatos e dados de modo conciso, o risco é a superficialidade. Contudo, mesmo superficialidade não implica em desinformação ou mentira. O problema está no modo como nos relacionamos com a informação e a armazenamos. Nesse cenário, é muito mais fácil uma mentira chegar até nós. Isso favorece a proliferação das chamadas fake news.
Essa lida que temos com a tecnologia e com a informação na atualidade reforça uma tendência natural do ser humano conhecida como viés de confirmação. Podemos pensar nessa tendência da seguinte forma: se uma informação reforça aquilo que eu acredito, irei considerá-la como válida. O que for contrário ao meu ponto de vista será considerado inválido ou como mentira. Como hoje levamos uma vida cada vez mais atribulada, o filtro mental que temos, que corrobora só aquilo que acreditamos, tende a se cristalizar.
Está ficando cada vez mais difícil para nós admitirmos que podemos estar errados sobre nossas opiniões, ou que as informações que confirmam nossas crenças possam estar equivocadas.
O que podemos fazer?
Falando a respeito de minha área de estudo, na Filosofia há um processo cognitivo que te ajuda a ampliar o filtro mental que você utiliza para reter informações, a esse processo damos o nome de dúvida. A dúvida é aquilo que nos ajuda a perceber que podemos estar errados sobre alguma coisa. Crie o hábito de questionar as suas próprias crenças. Essa atitude pode te levar a ter uma relação mais saudável com as outras pessoas e com você mesmo; ela pode ampliar o modo como percebemos o mundo.
Em relação às informações, criar o hábito da dúvida pode nos ajudar a questionar se uma informação que estamos recebendo é embasada em fatos. Tendemos a confiar nas informações que nos são repassadas por pessoas conhecidas. Com o hábito da dúvida, desenvolvemos uma espécie de ceticismo saudável em relação a tudo o que nos chega, mesmo que a fonte seja uma pessoa em quem depositamos confiança. E duvidar das informações ou crenças que uma pessoa propaga não implica em gostar menos dessa pessoa, até porque estamos todos sujeitos a nos enganarmos e basearmos nossas crenças em mentiras. Isso faz parte da vida.
É claro que temos receio de questionar alguém que conhecemos, porque a tendência natural das pessoas, ainda mais na atual conjuntura, é se ofender ao ter suas crenças e atitudes questionadas.
Informação leva à ação. Agimos com base nas informações que temos disponíveis. Se as informações estão erradas, agimos de modo errado.
Podemos dizer que essa lida que temos hoje com as informações, as mídias sociais e a própria tecnologia, favorece o que muitos estão designando como era da pós-verdade. No ano de 2016, o Dicionário de Oxford elegeu o termo pós-verdade como a palavra do ano e a definiu da seguinte maneira: "pós-verdade designa ou denota circunstâncias em que os fatos objetivos são menos importantes em formar a opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal". Ou seja, é uma circunstância em que uma informação que corrobora aquilo que você acredita, ou que mexe com suas emoções de alguma maneira, é mais importante do que uma verdade comprovada por fatos.
Agora imagine o seguinte: alguém ou algum grupo de pessoas percebe que o modo como estamos lidando com a informação está alterando o modo como enxergamos a realidade. Imagine que as informações começam a ser manipuladas de modo a direcionar grande parte da população a acreditar em uma mentira. Isso poderia ser feito através da coleta de dados que os usuários colocam na internet. Imagine agora que essas informações manipuladas são disseminadas em grupos nas redes sociais em uma capilaridade sem precedentes. Em alguns meses a pessoa ou grupo que inciou tal processo percebe que conseguiu alterar a visão de mundo de grande parte da população. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
Isso é possível porque, no modo de vida que levamos hoje, controlando a informação controlamos a forma de pensar das pessoas.
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Sugestões:
Pós-Verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news, de Matthew D'Ancona. Faro Editorial, 2018.
A Informação, de James Gleick. Companhia das Letras, 2013.
Podcast: Mundo Freak Confidencial Nº 225.
Dicionário de Oxford: https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016
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